Neste artigo, a médica indígena Lucíola Kaingáng, compartilha informações sobre o Subsistema de Saúde Indígena e sua vivência como profissional da atenção à saúde durante a pandemia na comunidade Kaingáng onde reside e trabalha, a aldeia Serrinha no RS.

*Informe Aldeia em Pandemia.

Muitos se perguntam o porquê de um subsistema diferenciado aos povos indígenas.

Conforme artigo 196 da Constituição Federal de 1988, “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. A Lei 8.080/90 prevê “às populações indígenas acesso garantido ao Sistema Único de Saúde – SUS, nas esferas da atenção primária, secundária e terciária à saúde, conforme necessidade”.

A Lei Arouca (nº 9.836/99) deu origem ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, com o funcionamento em perfeita integração com o SUS. Em meados de 2002 a Portaria nº 254 aprova a Política Nacional de Atenção dos Povos Indígenas.

É preciso compreender que as desigualdades sociais e econômicas têm influência direta nos processos de saúde-doença, impactando nas condições de saúde e agravando a situação de vulnerabilidade das comunidades indígenas. A desigualdade no acesso à saúde é um fator relevante que acentuou a situação de vulnerabilidade dos povos indígenas.

Um subsistema de saúde que reconhece as especificidades e necessidades das comunidades tradicionais indígenas, visa concretizar ações e, consequentemente, reduzir o risco de doenças e agravos à saúde, através de ações na promoção, proteção e recuperação em saúde.

Estar imersa neste subsistema como indígena, bem como atuar junto à Atenção Básica de Saúde como profissional médica foi um desafio enfrentado, principalmente no período da pandemia de Covid-19.

Atuo na Atenção Básica como médica generalista na equipe multidisciplinar de saúde indígena – EMSI, no posto de saúde da Bela Vista, na aldeia Serrinha, localizada na cidade de Engenho Velho, no Rio Grande do Sul.  A atenção Básica ou Primária, é considerada a porta de entrada no SUS, por permitir o primeiro contato do indivíduo, das famílias e da comunidade com o sistema de saúde.

Na pandemia, a Atenção Básica se voltou para os casos de sintomáticos respiratórios, estreitando a porta de entrada para outras demandas. Esta estratégia foi assimilada na rede pública para que todo paciente suspeito ou doente acometido pelo vírus de Covid-19 tivesse prioridade no acesso aos serviços de saúde, desde o diagnóstico precoce, realização de exames de imagem (tomografia computadorizada de tórax), tratamento precoce e encaminhamento para internação hospitalar de média e alta complexidade, conforme necessidade.

Vivenciar a pandemia como médica da atenção à saúde na comunidade indígena Kaingang trouxe à tona questões culturais, que até então não eram percebidas como um ato que influenciasse na disseminação de doenças para comunidades tradicionais.

Uma das características mais marcantes e comum aos povos indígenas é o convívio entre os indivíduos em famílias numerosas, ou seja, apresentam núcleos familiares extensos unidos principalmente pelo matriarcado. Este modo de vida vem a propagar e acelerar a cadeia de transmissão de doenças, principalmente de transmissão respiratória, tais como a Covid-19.

O conhecimento técnico-científico da Medicina Ocidental precisa se sobressair a atuação meramente técnica junto às comunidades tradicionais indígenas, devendo ser pautada pelo respeito como direito assegurado aos povos indígenas. A mudança de hábitos, rituais, costumes e tradições devem ser introduzidas de maneira a não agredir as comunidades, mas com fins de preservar a descendência dos povos indígenas.

Não apenas a população indígena obrigou-se a adaptar-se à nova realidade de convívio e modo de vida na pandemia, pois a mudança ocorreu em todos os setores da sociedade, no âmbito mundial. Assim, novos protocolos e diretrizes técnicas foram introduzidas nas redes de atendimento à população em todo o sistema de saúde.

Mudanças na Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena

Entre as principais medidas estabelecidas na EMSI para assistência da comunidade da Bela Vista estão:

 1 – Reorganização da estrutura física do posto de saúde para atender a alta demanda dos indígenas sintomático respiratórios;

2 – Priorização no atendimento dos Kaingang sintomáticos respiratórios;

3 – Redução no atendimento de programas de acompanhamento, tais como puericultura, coleta de preventivo, solicitação de exames de rotina;

 4 – Redução da carga horária da equipe de enfermagem, odontologia, agentes indígenas de saúde, através da realização de rodízios destes profissionais na assistência às comunidades;

5 – Fortalecimento da parceria com o município de Engenho Velho para aquisição de insumos e medicamentos específicos para Covid-19;

6 – Destinação de recursos financeiros, oriundos do município de Engenho Velho, para aquisição de cestas básicas destinadas aos indígenas infectados por Covid-19, bem como kits de higienização;

7 – Atuação da equipe a técnica do Pólo Base Passo Fundo junto com a EMSI em casos específicos ocorridos na aldeia;

8 – Agilização da EMSI na vacinação da população contra Covid-19;

9 –Participação da EMSI nas mídias digitais e tradicionais visando a veiculação de informações sobre sintomas, prevenção e orientações sobre Covid-19;

10 – Realização de aulas teóricas sobre Covid-19 pela médica da EMSI para os profissionais do posto;

11 – Realização de aulas visuais sobre Covid-19 para educadores e estudantes de ensino fundamental ao iniciarem as aulas na pandemia;

12 – Disponibilização da EMSI na participação do projeto de informação jornalística sobre a pandemia na aldeia Serrinha, a ação “Ẽmã tỹ Serrinha ki Kanhgág ag covid-19 kato jẽgjẽg – Povo Kaingáng da aldeia Serrinha combatendo a Covid-19”.

A partir dessas mudanças, espera-se que o trabalho continue a contribuir para uma ampla assistência de saúde pautada pelo respeito, enquanto direito assegurado aos povos indígenas brasileiros, colaborando para o desenvolvimento de programas, não somente na pandemia de Covid-19, mas em todas as áreas do cuidado aos povos originários.

Escrito por: Lucíola Kaingáng, médica generalista, atuante na Saúde Indígena e plantonista de Unidade de Pronto-Atendimento e Hospital de pequeno porte.

Foto: Silvana dos Santos Pinheiro.

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