Como uma vacinação em rota de fracasso em um Acampamento do povo Kaingáng é mudada de forma simples com a ajuda de um conselheiro legítimo local, uma médica Kaingáng e o uso do WhatsApp.

*Informe Aldeia em Pandemia.

Não é surpresa que o lançamento oficial da campanha de vacinação contra Covid-19 no país tenha deixado os brasileiros com muitas incertezas. O grau da insegurança entre os grupos prioritários para receberem o imunizante, como as populações indígenas, era alto.

Em fevereiro nesse auge, o conselheiro indígena Luís Alan Retânh Vaz, do povo Kaingáng, no Acampamento Fosá, do município de Lajeado no Rio Grande do Sul conta que, “a princípio nem o cacique ia vacinar”.

Sem conhecimento prévio da decisão hierárquica do lugar, uma data é determinada para a vacinação no Acampamento, embora sem o repasse de informações necessárias sobre a vacina para que as pessoas pudessem se posicionar em relação ao que fazer. Nessa situação, o conselheiro Luís Alan preocupa-se com a comunidade. “Era preciso eles virem para fazer uma fala sobre a importância da vacina e tirar as dúvidas porque ninguém da comunidade iria fazer a aplicação, eles iam perder a viagem”.

Esta situação é mais comum do que se pensa no Brasil onde constantemente os povos indígenas têm de lidar com uma série de decisões importantes acordadas sobre eles e suas comunidades em vários níveis da sociedade sem que haja uma consulta ou sequer um informe junto destas populações a respeito, além da carência de informações sobre diversos temas em seu meio. Práticas como estas vem sendo combatidas por povos indígenas há décadas a partir de denúncias realizadas de Norte a Sul do país em diversas frentes de discussão na sociedade, nas esferas governamentais, na comunicação, na academia e em outras áreas e campos do saber.

Nesta história do Acampamento Fosá, as noções esclarecedoras sobre a vacina contra a Covid-19 junto aos indígenas do povo Kaingáng via Governo e Ministérios responsáveis, chegariam em algum momento ao local, como de fato ocorreu, mas naquele instante, tudo que o conselheiro Luís Alan sabia é que a vacinação estava seguindo em rota de fracasso em sua comunidade.

Sem esperar mais tempo e encontrando-se reunido em um Conselho do Acampamento com outros indígenas, ele fez bom uso do aplicativo WhatsApp em seu celular, entrando em contato com uma das poucas profissionais indígenas médicas do povo Kaingáng, Lucíola Nivãn, moradora na Terra Indígena (TI) Serrinha, também no RS, para juntos, em comunidade, ouvir e serem ouvidos, como orienta a tradição oral dos povos indígenas em situações de tomadas de decisões diante da vida.

“Naquela reunião, eu liguei pra Lucíola e pedi pra ela como profissional que nos explicasse a importância da vacina e o que ela achava. Depois de toda a sua fala, aconselhando o pessoal no viva-voz, já começaram a abrir a mente e tirar as dúvidas”. Ele explica como a orientação da médica indígena fez grande diferença na decisão dele e da comunidade.

“Foi muito positiva a orientação dela, a comunidade tava bem em dúvida. Ela simplificou e a gente entendeu e colocou para o Acampamento e eles entenderam também. No fato dela ser parente nossa, uma Kaingáng, eles acreditaram e aceitaram. Mas foi um mutirão lá”, referindo-se ao alcance de indígenas vacinados na campanha no Acampamento Fosá.

A médica Lucíola Nivãn relata um pouco sobre a angústia da comunidade. “A dúvida em vacinar-se, as inverdades sobre o imunobiológico, os efeitos adversos, os mitos e as fakes news espalhadas na mídia, estavam influenciando um momento tão esperado e oportuno para os Kaingang”, explica Nivãn. Sobre as principais hesitações quanto a vacina naquele meio entre os indígenas, Lucíola esclarece, “o primeiro medo, o da morte, foi sanado. Depois, as explicações teórico-científicas de maneira simples e que os parentes entendessem, imagino que propiciou uma reviravolta na decisão de realizar a vacina na comunidade”, avaliou a médica.

Os dados do sistema oficial do Ministério da Saúde, o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (Sipni), onde constam informações específicas dos municípios, em atualização nesse início de julho, dia 9, apontam que a soma total de indígenas acima de 18 anos em Lajeado no RS era de 66 pessoas, tendo a cobertura vacinal alcançado cerca de 70% deste contingente indígena na aplicação da primeira dose nesta localidade, onde ocorreu esta história. Uma narrativa sobre a vacinação contra a Covid-19, sua condução e resultados, completamente transformados a partir de uma iniciativa bem-sucedida protagonizada por membros indígenas em prol de sua comunidade, e que ensina sobre a autonomia dos povos indígenas em prover saídas para demandas e conflitos específicos formulados pela sociedade como um todo e que raramente encontram-se divulgadas.

Atualmente, o conselheiro Luís Alan é cacique do Acampamento Fosá.

Escrito por: Sônia Kaingáng, jornalista indígena independente, especializada em Educação, Diversidade e Cultura Indígena. Cobre temáticas indígenas em Educação, Patrimônio Cultural, Conhecimentos Tradicionais e Biodiversidade, tendo atuado profissionalmente em organizações indígenas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. Atualmente pelo Instituto Kaingáng – Inka.

Foto: Sônia Kaingáng. (O conselheiro indígena Luís Alan, ao lado do seu filho Kãsé e da esposa, Mari Teresinha Franco, junto da médica Lucíola Nivãn na Comunidade Serrinha no RS.)

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