Nessa reportagem dividida em duas partes, conheça algumas condições de trabalho e prejuízos na renda de indígenas do povo Kaingáng durante a pandemia de Covid-19.

*Informe Aldeia em Pandemia.

O ano começou sem trabalho para o indígena Vanderlei Sales, de 31 anos, do povo Kaingáng, na Terra Indígena (TI) Serrinha, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul.

Ele responde o que o levou a aceitar então, um serviço temporário na colheita de uvas, que entre indígenas Kaingáng, não possui o mesmo status que a fruta confere ao Rio Grande do Sul, posicionado como o maior produtor nacional, com perspectivas de ganhos que ultrapassam 800 mil toneladas na safra de 2021.

“O dinheiro… o emprego tá difícil, não tem serviço por causa dessa pandemia”, revela Vanderlei, outro indígena que encarou o ciclo das jornadas exaustivas das colheitas que ocorrem em diferentes localidades no RS, onde geralmente apresentam-se para a tarefa, homens das famílias indígenas, e em certos casos, toda a família, em busca de renda.

Com a pandemia, o serviço ganhou proporções ainda piores como a ausência de fornecimento de máscaras, álcool gel e outros procedimentos de saúde que não são adotados na prevenção e combate a Covid-19 em muitos desses locais.

O trabalho nas temporadas de uvas, maçãs, alhos ou cebolas continuam então a gerar renda aos indígenas mesmo na pandemia, mantendo também, por vezes, as precárias condições em seus ambientes de trabalho, levando ao acúmulo de relatos por parte dos trabalhadores indígenas sobre os riscos a sua saúde e vida, além de casos de abusos verbais e maus tratos.

“Trabalhávamos de domingo a domingo, folga só na hora de dormir. Às 6h da manhã começava o trabalho, às vezes não dava nem tempo de tomar o café, porque eles querem clarear o dia já debaixo da parreira. Às vezes não levavam nem água, ficava a manhã inteira sem. O trabalho era direto, sem ter dez ou quinze minutos de tempo, ia até às sete e meia da noite colhendo sem parar. Teve dias que trabalhamos direto, uns quinze dias, e ele disse que daria uma folga pra nós no sábado de manhã pra ficar em casa, que era no alojamento. Era dia da nossa folga e tinha caído uma parreira no chão e ele mandou ir. Pra eles lá, acho que índio não tem valor. Tinha vezes que chovia cinco dias direto e nós colhendo uva, sem parar, debaixo de chuva. Uns não aguentavam, por causa que não é qualquer um que colhe cinco dias debaixo de chuva. É muito difícil, ele chamava a gente até de bugre debaixo da parreira e tinha que levar numa boa por causa que eles eram donos do lugar e nós, apenas empregado. Ficamos isolados, da roça pra casa, da casa pra roça. Ele não dava descanso pra nós”, detalha Vanderlei, que ainda não havia se vacinado contra a Covid-19.

Outros abusos ainda viriam quando o trabalhador indígena foi receber o pagamento pelos serviços prestados. “O patrão avisou que ia pagar só 60 reais, sendo que o valor era de 120 por dia, a gente tava pagando pra trabalhar lá. No acerto, não podia entrar na casa dele com o celular, deixamos tudo fora. Falou que se alguém quisesse falar alto que tinha uma doze (revólver) lá dentro da casa. Ele teve a coragem de falar pra mim que nós ajudamos muito ele. Nós colhemos metade da uva dele em menos de vinte dias. Depois ele disse: me desculpa alguma coisa… e deixou a gente lá”.

Vanderlei e o outro indígena que conseguiu permanecer no lugar trabalhando, tiveram de caminhar cerca de 10 km até uma cidade próxima aonde voltaram para casa de ônibus com os prejuízos.

As famílias indígenas artesãs

Com as restrições ao comércio nas cidades durante a pandemia, a ausência de renda obtida com a venda de artesanatos foi sentida amplamente pelos Kaingáng como na Comunidade Serrinha, onde 30% são artesãos e não possuem emprego formal, dependendo do artesanato para sobreviver.

Acompanhando a vacinação de indígenas contra a Covid-19 em Serrinha durante o trabalho jornalístico para esse Informe em fevereiro, estava a artesã Domingas Isaías, moradora na Linha Polita, uma senhora indígena de 77 anos. A artesã Domingas estava bem-disposta por realizar a vacina e diz que aguardou em casa até aquele momento, mas que sairia da aldeia assim que pudesse para comercializar seu artesanato. Ela organiza alguns deles na frente da sua casa e relembra, ao lado da bisneta Maria Vitória, o que aconteceu em 2020.

“Eu vendi o que eu tinha pra outros índios aqui na Serrinha mesmo”, conta ela, que comercializou todas as peças a preço de custo para evitar mais perdas. Domingas, assim como outras matriarcas indígenas do povo Kaingáng, exercem um papel importante no sustento de uma rede de familiares extensa e a falta de provisão financeira na vida de mulheres como ela pode gerar abatimento e inúmeros sofrimentos na dinâmica a que estão habituadas. A artesã declara, sorrindo, o seu próximo destino após um ano de espera: uma cidade turística próxima a capital Porto Alegre, Novo Hamburgo, a 358 km de distância de Serrinha, famosa pela produção de calçados, atraindo muitas pessoas e moradores da região em busca de compras e descanso.

Indígenas idosos e vacinados como Domingas irão correr o risco de contaminação pela Covid-19 pelo excesso de confiança na vacina e pela pressão financeira exercida pela necessidade de geração de renda por meio do comércio em todo o país.

Distante a 94 km dali, está a cidade de Iraí, onde está localizada a Terra Indígena (TI) Iraí, conhecida tradicionalmente pela confecção de belos artesanatos. É onde reside o artesão Mauro Casemiro, desde os 13 anos de idade no ofício. Mauro é formado em Pedagogia e é professor na Escola Indígena Nãn Ga em sua Comunidade. Em passagem pela sua aldeia, ele narra para este Informe, nesta última sexta (20), alguns impactos trazidos pela pandemia no seu dia a dia.

“Durante a pandemia, os meus clientes não conseguiram mais chegar aqui e os que compravam de mim não conseguiam mais vender. Aí também o artesanato só ficou estocado. Algumas vendas a gente faz, mas não era tanto como fazia antes da pandemia. Então, não fui só eu, mas toda a minha comunidade que trabalha com artesanato foi prejudicada. Não conseguiram mais sair vender em Santa Catarina e aqui no RS. Então os artesanatos ficaram só depositados em casa, alguns foram estragando e daí a gente não conseguiu recuperar. Também não consegui trabalhar fora, eu vendo bastante nos cursos, nos encontros, nas universidades e a gente não conseguiu sair mais. A pandemia então, só trouxe prejuízos. Mas, a gente com pandemia, sem pandemia, sempre tá trabalhando com o nosso artesanato”, relata o artesão ao lado da esposa e quatro filhos, sendo duas meninas e dois meninos, todos envolvidos com o trabalho artesanal Kaingáng.

Apesar da crise nesse aspecto, os povos indígenas do RS conquistaram uma vitória durante a pandemia no que diz respeito ao artesanato. Em 30 de setembro de 2020, foi aprovado o Projeto de Lei Estadual 487 que reconhece o artesanato produzido e comercializado diretamente pelas comunidades indígenas como de relevante interesse cultural do Estado do Rio Grande do Sul.

Escrito por: Sônia Kaingáng, primeira indígena jornalista do povo Kaingáng, especializada em Educação, Diversidade e Cultura Indígena. Cobre temáticas indígenas em Educação, Patrimônio Cultural, Conhecimentos Tradicionais e Biodiversidade, tendo atuado profissionalmente em organizações indígenas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. Atualmente pelo Instituto Kaingáng – Inka.

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COBRA É MORTA NO CORREDOR DE UM ALOJAMENTO NA COLHEITA DE UVAS NO RS. RELATOS SOBRE RISCOS À SAÚDE E VIDA DOS TRABALHADORES INDÍGENAS É FREQUENTE.
Foto: Renan Kẽgtár
“PRA ELES LÁ, ACHO QUE ÍNDIO NÃO TEM VALOR”, DIZ VANDERLEI SALES ACERCA DO SERVIÇO TEMPORÁRIO NAS COLHEITAS DE UVA ONDE ESTEVE NO INÍCIO DE 2021.
Foto: Sônia Kaingáng
VACINADA CONTRA A COVID-19, A ARTESÃ DOMINGAS ISAÍAS AO LADO DA NETA MARIA VITÓRIA, ESPERA SEGUIR ADIANTE COM SEU OFÍCIO. Foto: Sônia Kaingáng
O ARTESÃO MAURO CASEMIRO, DA TERRA INDÍGENA IRAÍ, MOSTRA OS PREJUÍZOS COM ARTESANATOS GUARDADOS DURANTE A PANDEMIA. Foto: Sônia Kaingáng

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