Acompanhe o monitoramento recente e os acontecimentos que marcaram a vacinação contra a Covid-19 com informações diretamente de Serrinha, um dos grandes territórios tradicionais do povo Kaingáng.

*Informe Aldeia em Pandemia.

“Eu sempre tomei as vacinas, cada um faz a sua decisão”, afirmou confiante o indígena do povo Kaingáng, Valmor Kanheró, de 59 anos, no Rio Grande do Sul, ao ser perguntado se iria realizar a 1ª dose da vacina contra a Covid-19 na Terra Indígena (TI) Serrinha, em Engenho Velho, no mês de fevereiro, período de início da campanha local.

Pai de sete filhos, Valmor é um indígena brasileiro que esteve na contramão das primeiras estatísticas sobre a vacinação no Estado do Rio Grande do Sul, que apontavam uma baixa adesão à vacina, com indígenas recusando o imunizante nos grandes territórios indígenas em meados de fevereiro.

Um deles é Cornélio Lopes, esposo e pai de família, que relata uma experiência traumática com uma medicação injetável, a benzetacil, e que seria a causa da recusa a vacina contra a Covid-19. Ele teria recebido o injetável e caminhado de volta para sua casa cerca de 7 km, onde desmaiou e foi encontrado por familiares.

Ao lado da esposa Ivonete Cândido, que optou por realizar a vacinação, Cornélio é um entre os muitos indígenas que escolheram não se vacinar na Comunidade Serrinha, alegando risco de morte. “Tenho medo, e se me acontecer alguma coisa, quem vai dar de comer pros meus filhos”, preocupou-se. Alguns dias depois, por razões de restrição no trabalho, Cornélio aceitou realizar a vacina.

Este depoimento, os registros fotográficos e outras informações deste informe foram recolhidos com exclusividade neste período de início da vacinação, onde a aldeia Serrinha, assim como outras terras indígenas no Brasil, havia restringido o acesso para pessoas de fora da comunidade como medida de contenção a Covid-19, momento em que os desafios da imunização estavam apenas começando.

A vacinação na Terra Indígena Serrinha

Para se ter uma ideia desse cenário é preciso conhecer algumas informações sobre o lugar, considerado uma das maiores terras tradicionais do povo Kaingáng, que é o terceiro maior povo em população indígena do Brasil.

Localizada no norte gaúcho, a Serrinha possui uma extensão aproximada de 12 mil hectares, onde vivem cerca de 400 famílias indígenas moradoras em diferentes setores na aldeia, com distância de vários quilômetros entre eles, ligados pelas características estradas rurais, incluindo as conhecidas “linhas”, que são locais específicos, muitos de difícil acesso, compondo um panorama típico de uma aldeia indígena sulista.

Com os elementos que tornam uma cobertura vacinal digna de atenção, o fornecimento das doses em Serrinha, com um cronograma para vacinar toda a população indígena acima de 18 anos, estimada em torno de 1,3 mil pessoas, é uma tarefa compartilhada pelo governo local de quatro municípios onde a terra indígena está posicionada: Ronda Alta, Três Palmeiras, Engenho Velho e Constantina, cada um responsável pelo alcance da vacina em sua circunscrição.

A distribuição e aplicação do imunizante são uma dinâmica à parte no contexto indígena da vacinação global contra a Covid-19, onde a atuação dos profissionais se destaca por fatores que vão desde o perfil social carismático que possuem, pelo domínio de um conjunto de habilidades como a facilidade em se comunicar com os indígenas locais, e a experiência de anos de atuação e dedicação “in loco”.

Em campo, a técnica em Enfermagem, Silvana dos Santos Pinheiro, ao lado do colega de trabalho e agente de saúde, o indígena Florentino Belin, do posto de saúde do Setor Bela Vista, no Engenho Velho, descreve alguns obstáculos à vacinação na Comunidade Serrinha como as evasivas dos indígenas ao imunizante e outras questões de ordem logística e estrutural.

“Marcamos a vacinação no posto e alguns indígenas vinham, outros não compareciam. As casas ficam longe do posto e o acesso é difícil para o pessoal, principalmente para os idosos. Quem tinha carro vinha, quem não tinha aguardava nas casas até irmos lá. Mas tivemos problemas com o carro por vários dias. Ao chegar nas casas, a gente enfrentou dificuldade para vacinar, eles recusavam dizendo que era a vacina que o Bolsonaro fez para matar os índios. Outras vezes, as lideranças dos setores foram com a gente, conversaram com o pessoal e alguns aceitaram fazer a vacina. Em outro momento, tivemos de sair porque não queriam vacinar”.

O casal de idosos indígenas, Elza Pinto e Augusto Portela, de 76 anos, aguardaram em casa a equipe de saúde. O veículo antigo que o idoso possui é usado apenas em caso de extrema necessidade. “O preço da gasolina é muito alto, usamos o carro somente para ir comprar comida na cidade”, disse ele.

Outro fator é o trânsito de indígenas em busca de geração de renda, o que retardou a aplicação da primeira dose da vacina que coincidiu com o deslocamento de famílias inteiras para fora da aldeia em plena pandemia de Covid-19, revelando a situação precária de renda entre o povo Kaingáng, forçando uma massa de trabalhadores indígenas para as temporadas de colheitas, a exemplo das maçãs e uvas ou como mão de obra barata no mercado de trabalho da região. Alguns haviam retornado das colheitas de maçãs com suas famílias como o indígena Volmir Nascimento, que oportunamente, a equipe de saúde encontrou em casa. Em outros locais próximos, as famílias já haviam saído da Comunidade, ficando fora por semanas e até por períodos maiores de tempo.

Apesar do panorama desafiador, o trabalho insistente dos profissionais da saúde mostrou-se fundamental no bom desempenho da vacinação como no município de Engenho Velho, por exemplo, anunciado como a primeira cidade a alcançar a meta de 70% da população vacinada contra a Covid-19 no RS, onde a população indígena Kaingáng ocupa 51% da área do município.

O recente monitoramento do Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul (DSEI/ISUL), correspondente ao Polo Base de Passo Fundo, dessa última sexta (13), apresenta a vacinação na Comunidade Serrinha com 93% de indígenas vacinados com a 2ª dose. Ainda com base no documento, os municípios que lideram a vacinação na Serrinha são Três Palmeiras, seguido de Constantina, Engenho Velho e por último, Ronda Alta. As vacinas distribuídas foram a CoronaVac, AstraZeneca e a dose única da Janssen.

Escrito por: Sônia Kaingáng, primeira indígena jornalista do povo Kaingáng, especializada em Educação, Diversidade e Cultura Indígena. Cobre temáticas indígenas em Educação, Patrimônio Cultural, Conhecimentos Tradicionais e Biodiversidade, tendo atuado profissionalmente em organizações indígenas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. Atualmente pelo Instituto Kaingáng – Inka.

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“EU SEMPRE TOMEI AS VACINAS, CADA UM FAZ A SUA DECISÃO”, AFIRMA O INDÍGENA VALMOR KANHERÓ, DE 59 ANOS, NA CONTRAMÃO DAS PRIMEIRAS ESTATÍSTICAS QUE INDICAVAM BAIXA ADESÃO DE INDÍGENAS KAINGÁNG À VACINA CONTRA COVID-19 EM MEADOS DE FEVEREIRO. Foto: Sônia Kaingáng
AO LADO DA ESPOSA IVONETE CÂNDIDO, O INDÍGENA CORNÉLIO LOPES, NA LINHA CAPOEIRA GRANDE NA ALDEIA SERRINHA, HESITA RECEBER A VACINA CONTRA COVID-19 E CORRER RISCO DE MORTE. “TENHO MEDO, E SE ME ACONTECER ALGUMA COISA, QUEM VAI DAR DE COMER PROS MEUS FILHOS”. Foto: Sônia Kaingáng
VACINA CONTRA A COVID-19 É LEVADA AO INTERIOR
DA ALDEIA INDÍGENA SERRINHA NO RS. Foto: Sônia Kaingáng
O ANCIÃO INDÍGENA, JOÃO FORTES, 102 ANOS, NA LINHA LUZATO, NA ALDEIA SERRINHA, RECEBE A PRIMEIRA DOSE DA VACINA EM CASA. Foto: Sônia Kaingáng
NA LINHA BOA VIDA EM SERRINHA, VOLMIR NASCIMENTO, NA CHEGADA DAS MAÇÃS, A CONHECIDA TEMPORADA DE TRABALHO FOI A ROTA DE CENTENAS DE INDÍGENAS E SUAS FAMÍLIAS PARA CIDADES COMO CAXIAS DO SUL, RETARDANDO A COBERTURA VACINAL. Foto: Sônia Kaingáng.
A INDÍGENA NAIARA MENDES É EXEMPLO DE UMA MINORIA LOCAL QUE FOI ATÉ O POSTO DE SAÚDE EM BUSCA DA VACINA. A ENFERMEIRA CAMILA ROBERTA PERIN APLICA O IMUNIZANTE. Foto: Sônia Kaingáng
VACINAÇÃO EXTRAMURO É POSSÍVEL COM EQUIPAMENTO ADEQUADO E NORMAS QUE REGULAMENTAM A AÇÃO. A INDÍGENA LEIDIANE PALHANO É VACINADA EM UMA ESTRADA DA LINHA CAPOEIRA GRANDE, NO INTERIOR DA COMUNIDADE SERRINHA. Foto: Sônia Kaingáng
O CASAL DE IDOSOS, ELZA PINTO E AUGUSTO PORTELA, DE 76 ANOS, AGUARDARAM EM CASA A VACINA.
Foto: Sônia Kaingáng
A TÉCNICA EM ENFERMAGEM, SILVANA DOS SANTOS PINHEIRO E O AGENTE DE SAÚDE, O INDÍGENA FLORENTINO BELIN. O PAPEL FUNDAMENTAL DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE NO CONTEXTO INDÍGENA PARA O ALCANCE DA VACINAÇÃO GLOBAL CONTRA A COVID-19. Foto: Sônia Kaingáng
O INDÍGENA KAINGÁNG MAURO DE PAULA, RECEBE O IMUNIZANTE CONTRA A COVID-19 PELA TÉCNICA EM ENFERMAGEM, SILVANA DOS SANTOS PINHEIRO, NA ALDEIA SERRINHA, EM ENGENHO VELHO, NO RS. Foto: Sônia Kaingáng

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