No Sul global em países como o Brasil, estudos de saúde sobre grupos específicos como as populações indígenas foram grandes aliados para reforçar a equidade a ser aplicada na vacinação contra a Covid-19, alcançando os mais vulneráveis.
*Informe Aldeia em Pandemia.
As duras novas sobre as primeiras mortes ocorridas no Brasil em 2020 pelo Sars-CoV-2, causador da Covid-19, alcançaram aos poucos os lares indígenas de diferentes povos, uma minoria que compõe hoje, menos de 1% da população brasileira, mas que representa, em termos de diversidade sociocultural, uma riqueza importante para o país e no mundo.
Em abril daquele ano, as palavras de uma anciã indígena Kaingáng do Rio Grande do Sul, expressavam as condições precárias nas quais a primeira onda da pandemia encontraria os territórios do seu povo. “A gente vê as pessoas dos outros países nos hospitais, com médicos, enfermeiras, aparelhos e todos morrendo. Quando essa doença chegar nas aldeias, com o frio e os problemas que a gente já tem, vai morrer muita gente”.
Era um presságio sobre a Covid-19 que se confirmaria tanto para indígenas como a outros milhares de brasileiros, exceto por algumas diferenças ainda mais difíceis de encarar para os primeiros sobre a doença, dando início a base nas regras sobre quem acessa primeiro a vacina contra Covid-19, um direito que se faz valer em tom de batalha no Sul Global, em países como o Brasil, com dimensões continentais e sérias necessidades de aquisição de vacinas onde mais de meio milhão de vidas foram perdidas, com registros de mortes diárias seguindo na pandemia.
Uma previsão da revista The Economist no último dezembro, revelou parte desta batalha ao mostrar que a maior parte da África e das repúblicas da Ásia Central, partes do Sudeste Asiático e Bangladesh, Paquistão e Afeganistão não receberiam nenhuma vacina até a primavera de 2022.
Para muitos países, a vacinação torna-se uma verdadeira batalha pois não se trata apenas de uma questão de envio, já que os recursos são finitos para a fabricação de vacinas, mas depende principalmente da negociação e poder de compra de doses pelos países, sua disponibilização e logística para aplicação.
Assim, nações como o Brasil recorrem para a definição de regras sobre quem pode acessar primeiro a vacina contra a Covid-19, gerando tensões e questionamentos por toda a sociedade como explica a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Francieli Fantinato, que esteve em um canal de televisão aberta tratando sobre o tema neste mês de julho.
“Nós fizemos definições de grupos prioritários para a vacinação, porque a gente imaginou que talvez não conseguisse vacinar num primeiro momento toda a população brasileira, então definiu-se objetivos para a vacinação que era primeiramente a manutenção da força de trabalho do setor saúde, na sequência, aqueles que mais morriam por morbidade e mortalidade e a manutenção, na sequência, do funcionamento dos serviços essenciais”.
De acordo com Fantinato, os grupos foram definidos mediante discussão de uma câmara técnica formada por diversas sociedades científicas, que segundo a ex-coordenadora do PNI “fazem a orientação junto com a nossa equipe técnica desse protocolo”, e sinalizou a existência de pressões dos diversos segmentos para mudar esses grupos, trazendo, segundo ela, dificuldades na execução da campanha de vacinação. Fantinato fez ainda a seguinte declaração, “se tivesse vacina suficiente não precisaria fazer essa fragmentação, nós evitaríamos toda essa pressão de todos os segmentos porque a gente daria início a uma campanha com uma quantidade maior de doses”.
A despeito desse gargalo onde nações como o Brasil se posicionaram, a disponibilização de estudos de mensuração e construção de indicadores de saúde sobre grupos populacionais específicos foram os grandes aliados para reforçar a equidade a ser aplicada na batalha da vacinação contra a Covid-19, alcançando indivíduos mais vulneráveis como é o caso dos povos indígenas.
Um desses documentos representativos é o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas, elaborado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena e Ministério da Saúde. Nele consta que, historicamente, observou-se maior vulnerabilidade biológica dos povos indígenas a viroses, particularmente as infecções de caráter respiratório. As epidemias e os altos índices de mortalidade por doenças transmissíveis também são responsáveis, segundo o documento, pela redução, de forma significativa, do número de indígenas que vivem no território brasileiro.
Na realidade, estas informações já se encontram registradas na memória coletiva de povos indígenas a partir das tragédias ocasionados por doenças desconhecidas para as quais não havia cura em sua medicina tradicional, responsáveis por devastar mortalmente acampamentos e povoados, aproximando a Covid-19 a uma espécie de pesadelo atualizado entre indígenas contendo as duas piores lembranças das enfermidades históricas em seu passado: um mal sem cura e que afeta principalmente o sistema respiratório.
Outras distinções como a imunidade das populações indígenas foram apontadas pelo maior estudo epidemiológico sobre o coronavírus no país, o Epicovid19-BR, onde os povos indígenas alcançaram cinco vezes em média maior risco de contaminação por Covid-19 do que as populações brancas.
“Este abismo de diferença é o que o Epicovid mostrou”, disse recentemente o epidemiologista e coordenador do estudo, Pedro Hallal, ao tratar sobre dados que apontavam diferenças étnico-raciais entre a população brasileira incluída no estudo, publicado há poucos meses na revista científica The Lancet Global Health. O epidemiologista ainda lamentou que o Ministério da Saúde tenha interrompido o Epicovid em junho de 2020 sem qualquer justificativa técnica.
A batalha da vacinação permanece em seu curso ao se verificar a 9ª edição do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 do Ministério da Saúde, onde “ao longo da campanha poderão ocorrer alterações na sequência de prioridades descritas […] e/ou subdivisões de alguns estratos populacionais, bem como a inserção de novos grupos, à luz de novas evidências sobre a doença, situação epidemiológica e das vacinas Covid-19”, declara o documento divulgado nesta última quinta, 15.
A anciã indígena do povo Kaingáng do início deste texto sobreviveria a primeira e a segunda onda da pandemia de Covid-19, contrariando os dados desanimadores sobre as taxas elevadas de contaminação e morte em seu grupo considerado de risco, acima de 60 anos, permanecendo com saúde e recebendo a vacina contra a doença durante o mês de fevereiro de 2021.
A exposição de informações com diferenças marcantes nos níveis de mortalidade e contaminação por Covid-19 muito mais elevados para povos indígenas no Brasil por documentos confiáveis serviram como importante aspecto sobre a complexidade existente no campo das distinções por grupos étnicos e aponta ao dever de considerar essas realidades na construção de políticas públicas de saúde, especificamente no caso de governos, aos sujeitos de direito no conjunto destas diferenças como os próprios indígenas e a toda a sociedade brasileira.
Escrito por: Sônia Kaingáng, jornalista indígena independente, especializada em Educação, Diversidade e Cultura Indígena. Cobre temáticas indígenas em Educação, Patrimônio Cultural, Conhecimentos Tradicionais e Biodiversidade, tendo atuado profissionalmente em organizações indígenas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. Atualmente pelo Instituto Kaingáng – Inka.
Foto: Sônia Kaingáng. (imagem original foi alterada, proibida a reprodução)
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